Identidade é um troço difícil de construir.

Quando criança, queria ser como a Mirela.

No auge de seus 4 ou 5 anos, Mirela era sempre a noivinha da festa junina, a queridinha da professora, a idolatradinha do garoto de quem eu gostava, o Felipe. Então, no jardim da infância, o resumo da minha vida era algo bem simples: queria ter a mesma identidade que Mirela.

O clube das gordinhas de ossos largos não era popular. Ficávamos lá, esquecidas no fim da fila. Quer dizer, esquecidas, não, porque ninguém se esquecia de fazer bullying com a gente:

– Gorda-baleia-saco-de-areia-comeu-banana-podre-morreu-de-caganeira!

Esse era o coro que costumava ouvir no recreio. Um jingle que definia nossa identidade: garotas fora do padrão que mereciam, por isso, ser excluídas. Os meninos e as meninas “normais” achavam bem divertido destruir nossa autoestima e traumatizar nossa infância.

Mirela ria. Ela era encantadora. Tinha covinhas. Um ar de menina doce. Era impossível não gostar da Mirela. Ela podia escolher qual tartaruga ninja queria ser na brincadeira (o Raphael, claro). Sobrava-me o Donatello, desprezado pela geral. Ninguém ouvia que o eu havia escolhido. Já estavam correndo à frente. Aprendi bem cedo o que era ficar no vácuo.

Desconfio que Mirela não fazia por mal. Não tinha culpa de ser bonitinha, extrovertida e esbelta. Ela se destacava naturalmente. Acontece que a sua figura me atingia em cheio, porque eu era sua perfeita antítese: tímida, anti-social, gorda, baleia, saco de areia…

Eu sabia que tinha habilidades. Desenhava muito bem. Era educada. Conseguia aprender rápido. Fui uma das primeiras a amarrar o tênis sozinha – coisa que o Felipe, meu amorzinho, não fazia. Mas nada disso me ajudava a ser aceita na escola. Então eu não gostava de ser a Cíntia. Ninguém ali dava a mínima para a Cíntia. Pelo contrário, a Cíntia era vítima de brincadeiras “inocentes” que a destruíam por dentro. Talvez tenha sido essa a minha primeira crise de identidade: não queria ser quem eu era.

Decidi que começaria a imitar a Mirela. Tentei arrumar o cabelo como o dela. Não deu muito certo: meus cachos bagunçados não ficavam bem nas tiaras fininhas que prendiam os cabelos lisos e louros da garota.

Resolvi que copiaria descaradamente suas atividades, então. Escolhi o Dia das Mães como o marco inicial da jornada. Precisava me sentir amada como a Mirela devia se sentir.

O trabalho era desenhar a mamãe. Copiei tudo direitinho, traço por traço: usei as mesmas cores que ela, segui as proporções exatas, delineei o mesmo tipo de roupa. Senti-me triunfante quando a professora disse que meu desenho estava lindo.

Só que minha mãe, morena, de olhos e cabelos castanhos, demorou anos até entender por que raios eu a tinha desenhado loira, de olhos azuis e cabelos lisos. Ficou magoada, desconfio. Na época, seguramente não consegui explicar-lhe todos os complexos motivos que me levaram a fazer aquilo. Ela sofreu e deve até ter deixado escapar uma ou outra lágrima de frustração. Não bastava ter sentido o preconceito na pele a vida toda por ser mãe de uma “branquela que havia puxado o pai”; agora a branquela a “homenageava” representando-a daquela forma quase agressiva… Difícil processar a informação.

Quando vi a tristeza estampada no rosto de minha mãe, senti imenso remorso. Ela não amava a Mirela que eu estava tentando ser – e sim, a Cíntia que eu sempre fui: gordinha, de cabelo cacheado, a mais alta da sala e a última da fila. A sua Cíntia.

Percebi, então, que não precisava ser quem eu não era.

Que eu tinha habilidades que poderiam fazer de mim alguém legal – mesmo sem ser esbeltinha, queridinha ou idolatradinha. Algum garoto tão esquisito quanto eu haveria de gostar de mim, um dia. Amigos e amigas genuínos viriam, e me deixariam explicar que eu curtia o Donatello porque ele era o mais inteligente – e não o mais popular.

Hoje, já com trinta e uns, sinto-me às vezes tentada a me espelhar em algumas Mirelas. Vejo como são bem-sucedidas, como dizem ser felizes, como prosperaram financeiramente, como acordam dispostas a malhar às 5h da manhã, como viajam, como estampam uma vida perfeita no Facebook…

De repente, num estalo, lembro-me do olhar amável e acolhedor de minha mãe, que me ama como sou.

E penso que prefiro ser esse conjunto complexo de imperfeições do que não ser verdadeiramente eu.