Tenho conversado com muitas pessoas que, assim como eu, têm buscado uma mudança significativa em suas vidas. Pessoas insatisfeitas com seu trabalho, com o pouco tempo que dedicam ao que realmente lhes interessa.
Sinto uma real intenção de mudança. Mas logo algo superenraizado – e por isso dificilmente perceptível – vem à tona: as pessoas querem começar algo novo, mas sem abrir mão das “recompensas” que sempre tiveram.
Para entender isso, começo com uma avaliação sobre nossa relação com o trabalho. Como ele nos leva a essa dinâmica que engessa tantas desejosas mudanças por aí?
Minha percepção é que o modelo de trabalho atual está defasado, pois é reflexo de uma economia fundamentada na escassez. Para lucrar mais é preciso gastar menos. Logo, cada vez menos pessoas precisam gerar cada vez mais resultados.
Aquele acúmulo de funções que você vai absorvendo, as responsabilidades que vão aumentando… um sistema concebido para te levar à exaustão.
Posso estar parecendo injusta, afinal, com o aumento das responsabilidades, aumenta também sua importância na empresa: seu reconhecimento, seu cargo e, provavelmente, seu salário. Talvez aumente até a sua equipe e – que honra! – logo menos você tem um time inteiro para cuidar. Já pode ser um coordenador ou um gerente. Já pode mandar.
Este é o exemplo padrão do universo corporativo – que sintetiza bem o modelo de sucesso atual – e que, com leves ajustes, retrata também outras áreas, como agências, consultorias, lojas, freelas… e até a área acadêmica, que vejo tragar alguns amigos mais dedicados, que nunca têm tempo que não seja para gerar mais e mais conhecimento.
Teoricamente, isso não seria um problema, desde que as pessoas amassem viver dessa forma – o que não acontece. Pelo menos a grande maioria está insatisfeita com o modelo atual.
As pessoas não têm o tempo de que gostariam ou precisam para cuidar da sua saúde, da sua família, dos seus hobbies ou do que quer que lhes interesse.
(PS: aqui NÃO me refiro aos que AMAM viver ocupados, sem tempo para nada, às custas de uma carreira de prestígio paga com a suada vida – e para estes sempre haverá um lugar, para eles o modelo atual foi feito. Ah, e é como eles que o modelo espera que você se comporte).
O problema é que parece não haver escolha. Não se pode deixar de trabalhar loucamente. Porque há a concorrência. Há poucos lugares no topo (e aqueles que vão se orgulhar de dar a vida para ocupá-los). Na real, com a crise, parece que há poucos lugares em toda parte.
E assim vivemos buscando ser os melhores, os mais rentáveis, os mais desejados, o talento em potencial.
Temos que viver acima da linha da média, sempre. Afinal, nunca se sabe quando esta linha vai subir, descartando os que ficarem para trás.
Vivemos essa cobrança contínua, eterna, que nos faz acreditar que nunca somos o bastante. Bons o bastante, competentes o bastante.
Vivemos com medo de não conseguir entregar o cumprido, de não gerir direito a equipe, de não nos comportar como o chefe espera. Vivemos o medo de a qualquer momento estarmos abaixo da linha. E dá-lhe avaliação de desempenho, funcionário do mês, relatório de aproveitamento para nos jogar isso na cara.
Essa sensação é péssima e, por mais que amemos o que fazemos, cadê o tesão? Estamos ali, sempre espremendo mais um pouco: mais uma hora na empresa, mais uma olhada na apresentação que ainda não está “boa o bastante”.
Atrasamos uma hora para encontrar os amigos, desencanamos da academia essa semana. O marido vai entender, a mãe vai entender.
Vamos passando nossa vida reféns de nós mesmos. De nosso desempenho. De nosso medo.
Não à toa cada vez mais pessoas estão caindo fora dessa roda que nos esmaga com suas incessantes cobranças, mas que também é muito sedutora ao nos recompensar com reconhecimento, conforto e poder. E aí que vem todo o problema que descrevi no início.
Essas “recompensas” da vida enlouquecida pagam muito bem as várias autoindulgências que acreditamos merecer. Afinal, são mais do que justas diante de tanto esquecimento pessoal, de tanta opressão emocional, mental e até física (virar a noite no trabalho, oi?) do dia a dia.
De repente torna-se normal gastar rios em restaurantes bacanas ou viver no salão de beleza quando não se tem tempo nem de cortar a unha do pé.
A engrenagem se alimenta disso tudo cobrando além da conta pelo valor de um show ou por uma cerveja no bar (até porque a gente paga, né?). E vamos acreditando que é isso mesmo.
Tá tudo caro. Todo ano fica tudo ainda mais caro. Logo, eu preciso trabalhar cada vez mais. A linha tá subindo, socorro! Até que um dia a gente estafa, tem burn-out, surta, dá piti.
Eu espero de coração que você não tenha precisado chegar a esse ponto para estar conscientemente desejoso de promover uma mudança. Porque é agora, amigo, que vem a parte mais complexa.
Se você quiser largar essa vida bandida, louca e esmagadora, você terá que abrir mão das recompensas que ela traz. Você está pronto para isso? Pronto para viver conscientemente com menos no final do mês?
Não porque necessariamente largar o modelo de sucesso atual é sinônimo de ganhar menos. E sim porque, para abraçar uma mudança REAL na sua vida, você vai precisar mudar seu mindset. A forma como você se relaciona com o dinheiro, com o que você adquire e o status do que ele te traz.
Enquanto acreditarmos que precisamos de todo esse conforto, desses benefícios, desse prestígio, não haverá trabalho menos enlouquecedor. Porque ele se sustenta dessa nossa dedicação, desse medo, dessa necessidade de ter que sempre fazer mais e nunca ser o bastante.
Enquanto você acreditar que o sucesso é isso, você até pode mudar de empresa, de área, de segmento, de função… mas não é aqui que reside a REAL mudança a que me refiro.
No lugar, é preciso mudar o que você espera da vida.
Só quando a gente muda o que espera como resultado de nosso trabalho é que a gente pode abraçar uma transição real. Se você só espera do seu trabalho mais dinheiro, para ter mais conforto, para ter mais algo, que vá suprir mais alguma expectativa, seja de que você se deu bem na vida, seja de que você é descolado, independente ou moderno, ou, ou…. sinto muito, não importa o que você queira fazer da vida, seu trabalho te oprimirá.
Sinto dizer que para essa mudança acontecer, muitas outras terão que mudar na sua mente. Preciso realmente de uma casa grande? Preciso colocar meu filho numa escola de renome? Preciso de um carro espaçoso? Melhor: preciso de carro? O que posso fazer para ter uma vida mais simples – onde “simples” de forma alguma é passar necessidade, não ter dinheiro para pagar um plano de saúde ou para planejar uma previdência no futuro.
É mudar sua relação com o consumo, sem deixar de ser remunerado de forma justa pelo seu trabalho, mas sem deixar que ele tome conta de sua vida.
De que valores você abre mão para isso? Que ações você deve tomar para tornar isso real?
Precisamos encontrar outros modelos de trabalho, outras formas de nos relacionar com o sucesso, rever essas recompensas sedutoras e o quanto efetivamente precisamos delas. Ou se só precisamos porque não estamos dando valor ao que realmente importa – e aí elas se tornam meros prazeres paliativos de nossa existência.
Esses são os questionamentos que eu deixo para você, agora que o ano novo está bem aqui.
OBS: A boa notícia é que tem muita gente se reorganizando em busca dessa mudança. E há uma série de iniciativas compartilhadas e colaborativas brotando por aí, que ajudam nessa árdua missão de rever nossa relação com o consumo e, consequentemente, com o modelo de trabalho atual. Mas isso é tema para um próximo texto…
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