Smartphones apitando sobre a mesa de jantar, mensagens de WhatsApp interrompendo diálogos familiares, curtidas no Facebook substituindo interações presenciais. O lado obscuro da tecnologia todos nós já conhecemos.

Não é mais novidade o fato de que os devices eletrônicos e a internet não apenas mediam as nossas relações mais próximas – mas muitas vezes também criam muros e nos isolam do mundo dito real.

Um ou outro ser vivo, de vez em quando, pula fora das redes ditas sociais. Já trocou ideia com um desses sujeitos? Faça o teste.

Na mesa de bar, ele tenta levantar questões para refletirmos: “pra quê essa imersão cega nas redes sociais? Quanto tempo perdemos com inutilidades? E essa exposição da intimidade? Todo mundo sabe onde moro, minhas preferências gastronômicas, o apelido do meu filho. Só eu vejo que isso não cheira nada bem?”

Fazemos que sim com a cabeça e, na primeira respirada mais longa do infeliz, damos uma checadinha nos likes novos daquela selfie que postamos no Instagram.

Sejamos sinceros: a teoria é muito mais bonita e fácil do que a prática, falaê. Troço viciante, esse, das tais redes.

Massageia o ego saber que o colega “curtiu” algo que você fez, falou, postou, comeu, vomitou…

Sim, porque vomitamos um discurso social e politicamente correto.

Somos contra tantas coisas, temos tantas causas, criamos tantos casos.

Não me admira que pessoas muito mais inteligentes e avançadas que nós tenham observado essa “zona” tecnológica onde vivemos e criado a fantástica série Black Mirror. Há 6 anos.

BlackMirror é uma das séries de sucesso da Netflix que, desde o lançamento em 2011 até a terceira e atual temporada, retrata justamente os comportamentos sociais que adquirimos em razão dos avanços tecnológicos – e suas possíveis consequências em curto prazo.

Com episódios independentes entre si, mas impactantes no melhor tipo tapa-na-cara, Black Mirror já é considerada por críticos como uma das mais relevantes da década.

Isso porque expõe e extrapola, sem nenhum tipo de filtro, as possíveis influências negativas da evolução tecnológica na sociedade.

“Se a tecnologia é uma droga – e parece mesmo ser uma – então quais são precisamente os efeitos colaterais? Esse espaço – entre apreciação e desconforto – é onde Black Mirror […] está localizada. O ‘espelho negro’ do título é o que você encontrará em todas as paredes, mesas, nas palmas das mão: a fria e brilhante tela de uma TV, um monitor ou um smartphone.” – Charlie Brooker, criador da série, em um artigo publicado em 2013 no jornal “The Guardian”.

Black Mirror é uma série perturbadora porque, ainda que se trate de ficção, mostra mundos, cenários e comportamentos aterrorizantes e muito próximos da realidade em que vivemos – ou estamos prestes a viver.

Atenção: se você não gosta de spoilers, melhor parar por aqui ou assistir à série antes de avançar para os próximos parágrafos. E, aproveitando a interrupção, não assista se não for maior de 18 anos, porque as cenas são beeem pesadinhas.

Em um dos intrigantes episódios da primeira temporada (“The Entire History of You”), por exemplo, os indivíduos têm acesso a um implante de memória que grava tudo o que fazem, veem e ouvem. Pode-se “voltar a fita” a qualquer momento, para confirmar se uma informação é verdadeira. Absolutamente tudo pode ser visto, ouvido e controlado.

Esse episódio – e a série como um todo – nos provocam a pensar se esse futuro está tão distante assim. E nos levam a refletir por que nos incomodamos tanto com a possibilidade de sermos “monitorados”. Por que nos molestaria que outras pessoas tivessem acesso a essas informações sobre nós?

Medo de decepcioná-las ou de manchar o personagem que construímos para representar a nós mesmos?

Também é improvável não se identificar com o episódio (“Nosedive”) que mostra uma realidade em que todas as relações são mediadas pela nota que os indivíduos recebem das pessoas com quem interagem. Foi gentil no elevador? Nota alta. Tratou mal o colega de trabalho? Bééééé: avaliação negativa. E, assim, os que mantém um bom “score” têm privilégios: salas VIP, filas especiais, descontos, podem frequentar determinados lugares de alto nível. Da mesma forma, os de notas baixas são marginalizados e discriminados. É preciso estar sempre feliz e ter uma aparência gentil em todas as interações – sob pena de não ganhar boas classificações e, por fim, ser penalizado socialmente.

“Fifteen Million Merits” é outro episódio perturbador que denuncia a alienação da sociedade atual: as pessoas vivem através de um avatar virtual, passam o dia pedalando para conseguir “créditos” e têm como objetivo principal serem aprovadas num programa no estilo X Factor para saírem da escravidão que vivem no dia a dia.

Não estamos também nós consumindo lixo televisivo e vivendo escravizados em um sistema que nos inverte as prioridades, suga todas as energias e ainda nos faz sentir culpados por não sermos milionários antes dos 30 anos?

Temos conseguido lutar contra os padrões de consumo e ideais de beleza a que somos submetidos? Ou será que temos nos rendido ao conceito de sucesso e de felicidade que diz que precisamos de muito – MUITO – dinheiro e de um incrível status profissional para sermos realizados, mesmo que isso nos custe a saúde e as horas com a família?

Como é possível deduzir, não há finais felizes em Black Mirror. Na série, a tecnologia sempre ganha. Esse é o retrato da sociedade em que estamos inseridos. O avanço tecnológico traz progresso, mas também pode ser o culpado pelo retrocesso das nossas relações.

Fica a reflexão: caminhamos pelas ruas com os olhos fixos numa tela brilhante, com fones de ouvido, totalmente solitários em meio a multidões e achamos isso normal? Ou temos conseguido emergir à superfície, encontrar tempo para nos relacionar e, de fato, viver o aqui e o agora?

Temos excelentes “desculpas”.

Estamos cansados. Vivemos numa correria louca.

Precisamos cuidar da família, da casa, do cachorro.

Mas, engraçado… tempo para postar tudo isso no Facebook – ou, pior, monitorar e stalkear a vida alheia – nós encontramos.