Sou uma defensora persistente que os relacionamentos, sejam eles de que natureza forem – amizade, namoro, noivado, casamento, família, profissão, etc. – precisam praticar a conversa.

Porque a conversa, no meu ponto de vista, cura.

Fiz um teste sobre “linguagens do amor”, proposta de Gary Chapman em seu livro de mesmo nome. O autor defende a ideia de que cada um de nós demonstra amor de formas diferentes. Portanto, quando recebemos amor da forma específica com a qual nos identificamos, nos sentimos mais amados do que de outras maneiras.

As cinco linguagens do amor, segundo Chapman, são: toque físico, atos de serviço, palavras de afirmação, tempo de qualidade e presentes. O autor constrói uma linha de argumentação densa e profunda explicando cada uma delas e até nos faz pensar sobre quais caminhos percorremos para que essa específica linguagem do amor fosse a nossa predominante.

Pois bem. A linguagem de amor com a qual eu mais me identifico, em qualquer relacionamento, é o tempo de qualidade.

Então, me sinto muito mais amada se você gastar um tempo conversando comigo sem se preocupar muito com a hora, do que se você lavar a minha louça (atos de serviço) ou me elogiar em público (palavras de afirmação).

Não que eu não me sinta amada dessas formas. Mas eu genuinamente sinto que você está me demonstrando carinho quando você “prioriza um tempo comigo”.

Meu marido e eu já perdemos a conta das vezes em que sentamos no sofá pra assistir alguma coisa e, antes de dar o play no Netflix, engatamos uma conversa, e assim ficamos por muito mais do que duraria um episódio de “Suits”. Ou, então, íamos apenas combinar algumas coisas durante o jantar e acabamos nos apoiando um no outro, depois de tanta conversa e choro (este último por minha conta, pela TPM, na maioria das vezes, rs).

Na casa da minha mãe é quase uma tradição não dita, mas todas as nossas conversas mais sérias começam despretensiosamente e perduram até onde conseguirmos levar. Detalhe: sempre na cozinha.

Seja de dia ou de noite, de tarde ou madrugada adentro. Foi sentada junto à mesa da cozinha que eu chorei, por muitas vezes, por motivos que iam desde um stress prévestibular, até à séria decisão de chamar a ambulância para socorrer meu pai que estava acamado por conta de uma doença há alguns anos. Ali também aconteceram aquelas conversas que acabavam em gargalhadas infinitas minhas, da minha mãe, da minha irmã e da minha avó, de madrugada.

Poder falar para o outro (e este para nós) nossas impressões, nossos pontos de vista, nosso jeito de resolver problemas, é o que nos ajuda a construir relacionamentos sólidos.

O contrário infelizmente não tem um bom prognóstico: a falta de conversa gera infinitas falhas de comunicação, conhecimento raso e, consequentemente, nos torna insensíveis às necessidades do outro.

Pra conversar não podemos ter pressa.

Temos que desligar nossos relógios mentais, sossegar nossas ansiedades momentâneas, silenciar nossas bagagens de deduções, históricos e dores, acalmar nosso imediatismo e, simplesmente, ouvir.

E, quando a hora chegar, falar!

Uma conversa não é um monólogo! Quem ficou falando um bom tempo geralmente também quer ouvir você.

É uma troca de informações.

Muitas vezes, queremos falar pra ouvir o que pensamos em voz alta.

Parece uma frase sem sentido, mas não é. Quando raciocinamos muito, acontece de não conseguimos discernir nossos pensamentos, digerir sentimentos, processar acontecimentos. Ao falar com alguém que sinceramente nos ouve, acabamos por entender e aceitar o que a gente mesmo já pensava, mas não tínhamos conseguido abafar o nosso barulho interno para decifrar.

Um tempo de qualidade, de conversa e troca verdadeira, demonstra cuidado, dedicação, empenho no relacionamento que você tem interesse em salvaguardar.

A conversa pode curar: um mal-entendido, um ressentimento, uma falha na comunicação, um medo…

Ouvir com empatia  o outro me faz tentar entender o que ele está dizendo antes que eu – com minhas bagagens, deduções e predisposições – conclua sem deixar que a pessoa termine o raciocínio. (Empatia vem do grego “em” e “pathos“, ou seja, entrar nos sentimentos).

Deixo, abaixo, um texto incrível do mestre Rubem Alves, que conclui esse meu raciocínio com muito mais clareza do que eu conseguiria fazer.

Escutatória

Por Rubem Alves
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil.
Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego.
As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos.
Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise…) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia – a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia.
Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada…“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg – citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas.
Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma).
Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou.
Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.” Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.” E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro.
Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa.
Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci.
O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete.
Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei.
Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino…” Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem.
No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.
Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto…
Esse texto faz parte do livro de crônicas: “O amor que acende a lua”, de Rubem Alves.