– Servido, colega?
– Tá com uma cara boa esse sorvete, hein. Eu quero uma lambida, sim.
– Pode ficar com ele.
Aceitar teco de milho cozido, chupada de pirulito, pedaço de maçã do amor: tudo coisa de gente que vive no limbo da inocência sem noção.
Tenho a teoria de que essas pessoas não o fazem por mal. Simplesmente não percebem o quanto sua atitude – para elas, normal – é inconveniente para o resto da humanidade. (Quero ressaltar que não estou falando de pessoas íntimas. Com essas, temos mais é que dividir mesmo: garfo, prato, copo, toalha, o que for. Estou falando de todas as outras, com quem não temos uma relação próxima).
Gente assim tem sempre uma dor maior e uma angústia mais profunda que a nossa. Se nos vê cair, conta que seu tombo foi mais grave e, só depois, talvez se lembre de nos estender a mão. Quando conquistamos uma promoção no trabalho, está ali para nos recordar as imensas glórias colecionadas em sua esplendorosa trajetória profissional.
Já assistiu o filme da Dory, que há uns anos procurava o Nemo? A peixinha é o perfeito exemplo de alguém com esse transtorno: carismática, prestativa, um amor; mas, também, distraída, autocentrada e impulsiva. O resultado dessa somatória? Um limbo pegajoso composto de uma densa mistura de inocência com falta de noção.
Acontece que o caso da Dory tem agravantes: desde a infância, sofre de perda de memória recente. Portanto, para ela, viver no limbo da inocência sem noção é algo patológico. O que dizer de pessoas que apresentam o mesmo comportamento, mas sem nenhuma causa aparente?
Um casal de namorados resolve curtir uma noite romântica. Pede vinho, acaba de brindar. Chega a colega e puxa uma cadeira. Não contente em interromper o namoro dos pombinhos, fica horas contando quão pesarosa é a vida de casada, e como foi complicado deixar as crianças com a sogra para que pudesse estar ali, jantando com o marido (que ficou todo esse tempo esperando na mesa ao lado, sozinho).
Quem vive fora desse limbo, pode ver tal atitude como crueldade. Acredite: é distração. Ou, expondo de maneira mais psicologicamente crível, trata-se de um “desvio da percepção alheia”.
Há diferentes níveis desse transtorno, segundo a psico-curiosa Cíntia Santana, que vos fala. O mais conhecido – e grave – é a famosa falta de noção. Funciona como um espelho retrovisor mal regulado. Você não vê o que está lá atrás. Vê o próprio reflexo. Então esquece que precisava olhar para outro lugar, e permanece ali, mirando a própria face, tal qual Narciso.
E, já que tocamos no assunto, vale destacar: a autoestima das pessoas que vivem no limbo da inocência sem noção é elevadíssima. Sentem-se amadas – amando-as você ou não. Ô, gente que gosta de si mesma.
Essas pessoas não são gordas; têm um pouco de barriga. Não são matracas ambulantes; são sociáveis. Não vestem roupas inadequadas; têm espírito jovem.
É bem típico desse perfil responder sinceramente o nosso questionamento default matinal, no meio da rua, a caminho do trabalho: “Oi, tudo bem?”. Não. Com ele, não está: “Ih, a noite foi terrível, rapaz. O cachorro do vizinho está com urticária e não parou de latir um minuto. O Juninho ainda mama no peito, coitada da Julia, dá um trabalhão danado pra ela fazer o garoto voltar a dormir. Também, com aquele barulho infernal… Já falei com o síndico, mas sabe como essas coisas de condomínio são burocráticas. Por isso, como sempre digo, um dia vou morar no interior. Lá não tem disso, não. O povo é amigo, todo mundo se ajuda sem interesse. Uma vez, um primo meu – você conhece o Juvenal, marido da Ivonete, que morreu de tragédia, não conhece? – então, esse primo teve hemorroida…”. Se deixar, o sujeito perde o ônibus, você perde a reunião, ambos perdem a amizade.
Pessoas que vivem no limbo da inocência sem noção são arejadas. Porosas. Suflairs humanos devidamente aerados.
Incapazes de ouvir indiretas, possuem um filtro anti-ironia que bloqueia qualquer comentário passível de perturbar sua paz interior.
Esses privilegiados seres desfrutam do melhor da vida. Vivem sem muita dor. O que os olhos – e ouvidos – não assimilam, coração não sente, não é assim?
Considero-me uma pessoa relativamente sensível e empática. Acho que não conseguiria viver no limbo da inocência sem noção. Mas, confesso: talvez fosse mais feliz ali. Ao ser questionada, depois de um atraso indesculpável, poderia travar um diálogo mais ou menos como o do colega:
– Perdeu o relógio, ô, mané?
– Acredita que parou de funcionar, ontem à noite, do nada? Demorei porque tive que levar no meu primo para consertar. O Juvenal, que teve hemorroida, lembra?… Ei! Dá um teco desse Chicabon?
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