Quando o assunto é a morte, pouco ou nada cabe a nós, mortais, fazer.
A gente se gaba de ter inventado vacinas, técnicas ultramodernas de diagnóstico, ginástica funcional, dietas sem glúten, sem lactose e sem uma pá de outras paradas importantes para evitar o inevitável. Ou para viver melhor até que ele – fatalmente – chegue.
Acontece que criamos a medicina paliativa para aliviar a dor de quem vai, mas ainda não descobrimos um tratamento preventivo para evitar a devastação emocional de quem fica.
Ninguém foi feito para perder outro alguém
Lidar com a morte é algo complexo e doloroso. Ninguém foi feito para perder outro alguém. Diz que Adão e Eva zoaram o barraco lá no Éden e todo mundo paga o preço, hoje, de não ser eterno.
Falar sobre o luto é uma das práticas que talvez mais tenha me ajudado a trabalhar essa dor. Já perdi amiga na infância, avó materna quando completei vinte e poucos e o pai, recentemente, quando fiz trinta e dois. Todos antes da hora, no meu ponto de vista. (Como se um dia eu fosse assumir que a hora havia chegado. Não. Nunca, se dependesse de mim).
Não estou pronta – e jamais estarei –para perder minha mãe, meu irmão, meu marido, minha filha, nenhum amigo ou primo, tios e tias, nem mesmo conhecidos ou vizinhos.
Quando esses dias chegarem – porque muito provavelmente chegarão, e só doerá mais se eu não reconhecer isso hoje –, vou chorar. O mundo vai desabar. Meu desejo será sumir, ir embora junto, canalizar toda tristeza para um buraco negro onde eu possa me enfiar, correndo, para não ter que encarar que estou mais solitária que antes, já que alguém querido partiu.
É egoísmo, no fundo, sim. Lamentamos porque dói em nós – e não em quem já se foi. Dói a separação, dói a amargura de saber que nunca mais falaremos com a pessoa a quem amamos, dói pensar que a saudade vai latejar todos os dias e que os que ficarem à nossa volta não vão nos entender, se nunca tiverem passado por algo semelhante. Pior: poderão sentir dó ao invés de empatia.
A importância de deixar doer
Esta semana, uma amiga querida que também perdeu o pai me escreveu, contando que aquele dia estava mais difícil que outros. Disse que o choque de realidade de pensar que não vamos mais ver a pessoa que partiu nos provoca “um aperto”.
Confesso que não sabia muito o que dizer a ela. Qualquer coisa supostamente inteligente que a gente tente falar pode só piorar a situação, como me ensinou a Cynthia de Almeida, uma das fundadoras do projeto “Vamos falar sobre o luto”, numa entrevista aqui para o Trinta e Umas.
Resolvi, então, contar à minha amiga o que tem funcionado para mim. Nesses dias piores que outros, infelizmente, penso que a única coisa que a gente pode fazer é deixar doer. Dizem que melhora, depois. Sei lá quanto depois.
Tenho aprendido a não lutar contra a dor. Acho que essa é a melhor forma de respeitar a mim mesma e também ao meu pai, que partiu.
Sinto falta dele. Minha referência foi embora. Não tenho mais como perguntar coisas que só perguntaria para ele. Nunca mais vou ouvir aquele assovio inconfundível. Tudo isso dói muito.
Se eu tentar fingir que dói só um pouco, a quem estarei enganando além de mim mesma? Se eu não me permitir chorar, qual será o organismo mais prejudicado? Se eu tentar sublimar a dor e fizer de conta que ela é menor que os bons momentos que tivemos, estarei misturando lé com cré. Oras, é justamente porque tenho boas lembranças que a ausência tanto dói!
Engolir o choro, não
Recebi hoje cedo a notícia do falecimento do Seu Guaraci. Apesar de não ser meu parente, o carinho que sentia por aquele senhorzinho era quase inexplicável.
Convivemos na mesma comunidade, uma igreja evangélica pequena no ABC. Desde criança, observava seu sorriso tímido e fazia questão de receber aquele aperto de mão geladinho e lhe dizer: “Boa semana, Seu Guaraci”. O mesmo cumprimento que ele me deu no velório de sua esposa, há alguns anos atrás. Ao lado do caixão de sua companheira, Seu Guaraci recebeu nosso abraço e, ainda conseguindo sorrir, perguntou se havíamos tomado um cafezinho. Colocava os outros antes de si mesmo, sempre.
Não conheci meus avôs, mas gostava de pensar que Seu Guaraci fazia, mesmo que de longe e involuntariamente, esse papel na minha vida: era exemplo.
Lembro-me de ter ouvido sua voz pouquíssimas vezes. Como ele ensinava tanto sem usar palavras? Como inspirou tanta gente a ter esperança, a viver de forma simples, a caminhar com humildade, a pensar mais no outro que em si mesmo? Sem palavras!
Se nós, que não temos laços de sangue, estamos profundamente tristes, fico pensando em como está sua família. Filhos, genros, noras, netos, bisnetos. Quanta dor tem aí pra doer. Ninguém pode senti-la por eles. Apenas com eles.
Deixar doer é um tratamento necessário para o luto.
Dizem que existem fases, que o luto é um processo. Não sou especialista no assunto e adoraria ignorá-lo completamente. Acontece que, assim como foi comigo, queiramos ou não, todos viveremos o luto ou provocaremos alguém a vivê-lo quando partirmos. Tem saída não.
Resta-nos viver os dias tratando cada pessoa de forma única, não economizando amor e entregando flores em vida, para que não haja arrependimentos tardios.
E, hoje, sim, chorar tudo que tiver que ser chorado.
Ótimo Cíntia!!! Sofro ainda a perda da minha mãe, minha melhor amiga, meu braço direito, meu porto seguro. Ela partiu há um ano e a dor é imensa e aumenta a cada dia.
O seu texto é muito bom, assim como todos.
Obrigada por me fazer saber que posso chorar, posso sentir essa dor, não preciso ser forte.
Cris, fico muito satisfeita em saber que o texto ajudou você, nem que seja a chorar… Deixa doer, minha querida. Um abraço.