Contribuir como cidadã no dia das eleições nunca foi um sonho. Tinha curiosidade, mas, depois de me tornar mãe de três filhos, isso deixou de ser algo tão interessante.
Acontece que fiz a transferência de título eleitoral para minha nova cidade de residência e de coração: Florianópolis. E não imaginava, mas, com isso, fui convocada para trabalhar nas eleições.
Nesse momento da vida, era a última coisa que queria. Cansada, cheia de desafios pessoais e de compromissos profissionais, desiludida com o cenário apresentado pelos candidatos, queria mesmo ficar em casa, de preferência na cama, dormindo.
Sempre tive certeza de que política não era algo apenas para políticos, não era uma profissão ou carreira voltada para especialistas ou tampouco um bem herdado. Também entendo que a consciência da importância do engajamento e da participação no cuidado com a administração do que é público e coletivo é algo que se aprende de berço, em casa. Política é para todos. É o momento no qual nos voltamos para o interesse do nosso grupo social mais amplo, nosso país como um todo. Nesse contexto, o voto torna-se o mínimo que podemos fazer para contribuir.
Pois bem. Ao ser convocada, não havia mais opção. Mas, como encarar esse ato político, para mim duplamente obrigatório (já que era obrigada a votar e também a me apresentar ao cargo designado na seção eleitoral)?
Decidi que iria participar com espírito aberto e confiante. Que faria meu trabalho com paz e boa vontade.
E levei comigo também meu hábito de pesquisadora observadora… Este último foi o que suscitou em mim algumas reflexões.
Explico. Um jovem de vinte e poucos anos (sim, depois dos 30 a gente não se chama de jovem e passa a chamar os outros assim… então, percebemos que estamos em outra categoria, uma mediana, para a qual não me ocorre nenhum nome adequado) ficou bravo quando lhe pedi que apresentasse um documento com foto, além do título. O intuito era verificar se estava no local correto (muitas alterações foram feitas com o recadastramento obrigatório com biometria e as pessoas estavam perdidas) e também facilitar o trabalho dos mesários dentro da sala de votação.
Ele pediu desculpas por despejar sua indignação sobre mim, mas foi argumentando que era um absurdo ele ter passado todo o trabalho para fazer o título para a eleição com método biométrico e ainda ter de enfrentar toda a burocracia anterior. De repente, me vi fazendo o papel dos mais velhos: reconheci a inutilidade (na verdade desperdício de energia de vida) em reclamar e protestar por algo que faz parte de um processo. O sistema é novo e deverá apresentar erros (como aconteceu em muitos lugares, mas não onde trabalhei) para ser aperfeiçoado.
Assim é a vida, falível e merecedora de muitos ajustes e aprimoramentos. Paciência e compreensão que vem com os anos.
Mas, do que adiantava explicar? Na idade dele faz parte revoltar-se com as coisas e achar tudo injusto e absurdo. Deve ser uma energia especial para ação dessa idade. Não que não o seja em fases posteriores da vida, mas seguramente não são as predominantes. Graças a Deus, pois eu mesma não daria conta e logo morreria de taquicardia se tivesse que levar a vida ainda assim.
Continuando: ele explicou que havia morado no exterior e que nada disso aconteceria assim, lá fora. Pronto. De novo, voltei para o lugar de mais velha que pensa “entendo, concordo em alguns pontos, mas não é bem assim…”. Perguntei-lhe onde havia morado. Austrália, um país de colonização inglesa. Não me aguentei e deixei de ser ouvinte para discorrer sobre o fato do Brasil ter uma formação bem diversa e de nossa herança cultural vir de uma miscelânea das culturas portuguesa, africana, italiana, com contribuições dos alemães, japoneses, holandeses sem contar da nossa raiz mestra vir dos índios. Não há como comparar. É uma outra bagagem. Que, ao chegar em solo brasileiro, formou uma outra composição. Por que queremos ser iguais? Por que queremos que a trajetória histórica se assemelhe? Não faz sentido.
Temos que descobrir o nosso jeito e fazê-lo com dignidade, respeito e coragem. Parece que tudo o que vem de fora é melhor. E não é… De longe, pode parecer que sim, mas sempre há problemas e dificuldades. É assim com tudo o que o ser humano faz.
Percebi o quanto estou farta de ouvir que não temos jeito, que nosso país nunca mudará. Assim, fica realmente difícil votar. Por isso é que nasce a obrigatoriedade das coisas: “só o faço, se tiver algo em troca para mim, pois nada muda, mesmo”.
Chegamos na descrença. Outra reflexão. Como podemos morar num pais tão religioso, onde se fala tanto em Deus, como se fosse algo exterior e distante de nós? “Na verdade, não de mim. Ele está perto de mim, mas longe do outro, pois o outro… ah, nesse não dá para confiar”. Estamos sempre desconfiados! Precisamos parar de partir do princípio que o outro irá me “passar a perna” e que eu só posso confiar nele se ele se provar merecedor. Vivemos numa bolha de desconfiança, como se cada um tivesse à espreita do outro, pronto para lhe passar para trás, focado em seu próprio bem. Que sociedade se constrói assim?
Então, por favor, não fale perto de mim que você quer morar fora porque não acredita mais nesse país. Não o julgo. Entendo suas explicações. Mas se todas as pessoas boas – de boa-fé, de boa índole, de boa vontade, trabalhadeiras – forem embora do Brasil, o que será do que ficar? Quem será por nós?
De nada adianta alegar que se deseja dar um futuro melhor para seus filhos, como se isso não fosse possível aqui. Fui criada em outro país, cresci em outra cultura e com outra língua e sou muito grata a meus pais por essa experiência. Possuo uma plasticidade na alma por ter vivenciado esse intercâmbio de saberes e modos de ser. Tenho vontade de morar fora com meus três meninos, mas jamais para fugir, abandonar e nunca mais voltar.
O futuro não é das crianças. O futuro é dos adultos.
O que quero dizer com isso? Não acredito mais que “fazemos hoje para dar um futuro para as crianças, para que elas possam receber algo melhor”. Já acreditei nisso. Mas trabalhar nas eleições me fez perceber que esse pensamento chegou ao fim. Se eu tinha dúvidas, agora não tenho.
A criança é puro presente. Para ela, interessa o que fazemos hoje. Aqui. Agora. É nossa ação, nossa moralidade da vida presente que vai atuar nela e mostrar-lhe o que significa ser humano. É nosso esforço de sermos melhores e crescermos com os aprendizados de cada dia que ensina a elas a condição humana de aprendizes eternos.
É um tanto estranho e talvez complicado de entender. O futuro do futuro (já que temos em nossa língua um “futuro do pretérito”, dei-me a liberdade de criar o “futuro do futuro”) pertence às crianças. Mas quem faz o futuro somos nós, com nossas escolhas.
Ficar ou ir faz diferença não apenas para a vida de seu filho, mas para o povo dessas terras brasileiras. Seu filho dará continuidade àquilo que você semeou no presente.
Então, esse jovem com quem conversei ainda está no exercício de tomar em suas mãos o futuro que seus pais se empenharam em realizar, e irá amadurecer ainda para criar um futuro do qual talvez meus filhos (agora com 10, 5 e 4 anos de idade) irão desfrutar.
Meus filhos representam o vindouro mais longínquo e não quero jogar sobre eles o peso da responsabilidade pelo futuro (“as crianças são o futuro da nação”, quem nunca ouviu essa frase?). Quero libertá-los desse ônus ao assumir para mim a obrigação de construir um futuro decente com consciência e amor.
O futuro pertence aos adultos. Portanto, olhemos para nós. O que estamos fazendo hoje? O que nos move na vida? Como nos relacionamos com os outros?
Esse será o guia para nossas crianças.
Sem Comentário