Aviso: este texto contém spoilers do filme Arrival.
Esse filme me pegou de surpresa da primeira vez.
Não sou o maior fã do diretor, e o começo superemocional “quero-ser-Malick” não me agradou logo de cara. Além disso, a abordagem meio amadora sobre o ensino de línguas é irritante (sério que SÓ AGORA passou pela cabeça trazer um quadro branco pra desenhar?), sem falar do quão conveniente é uma espécie alienígena ser tão completamente diferente de nós, mas ainda enxergar o mesmo espectro de luz e até se comunicar por som! Nem aqui na Terra é fácil achar animais que se comunicam assim.
Mas tudo bem, porque no final do filme, todo aquele núcleo emocional que não tinha me agradado muito se funde com a trama do filme de um jeito tão belo e significativo que eu não tive como não abraçar totalmente a ideia.
Mas o filme segura uma segunda assistida? Saber o final estraga a experiência?
No meu caso, pelo menos, a resposta é clara: o filme é ainda melhor da segunda vez. A trilha emocional da primeira cena (que só aparece de novo no final) já dá o tom desde o início, estilo filme da Pixar. (Tive uma experiência parecida assistindo de novo os dez primeiros segundos de Inside Out. Tive que parar).
Cada “flashback”, cada pista do que está por vir faz sentido e ganha um significado novo. Eles reforçam a mensagem, sem forçar demais a barra.
Para um filme sci-fi sem muita ênfase em efeitos visuais, isso é cinema técnico da maior qualidade.
Mas claro que nem todo mundo tem uma opinião tão positiva do filme. Ouvi pessoas descrevendo Arrival como um filminho de cooperação mundial bobo e nada realista, com trama com obstáculos artificiais e uma protagonista super-heroína bidimensional.
Falam que a conversa com o general chinês é muito conveniente e explicativa, mas eu gosto de pensar (mesmo se a tradução do chinês não confirmar) que, naquele telefonema crucial, ela também tenha pedido que ele contasse a história toda quando eles se encontrassem no futuro.
Mas sendo mais objetivo: eu não acho que o filme é, nem de longe, sobre cooperação mundial.
O final do filme não é a confraternização com os dignitários mundiais tomando champanhe. Não tem nada sobre a Dra Banks ter “salvado o mundo”, não tem exércitos se retirando de áreas em conflito, avanços tecnológicos, motor pra viajar mais rápido que a luz. No máximo, ela aparece ensinando a língua pra outras pessoas.
O resto (o cerne do filme) é sobre uma questão filosófica em especial.
Não é sobre solidão. Ela ensina a língua para todos. Logo, todos vão ter o mesmo conhecimento e capacidade.
A questão é difícil e mais profunda: Vale a pena investir em algo bom se você soubesse com certeza que esse algo falharia? Ou sua versão mais niilista: “por que trazer outro ser pra este mundo cheio de sofrimento?”
A chave do filme está numa das frases mais engraçadas-sem-querer de qualquer filme deste ano. É na cena onde ela faz a única escolha de verdade do filme. A pergunta dele, sussurrando “Do you want to make a baby?”, é totalmente brega mas, mesmo assim, não tem nada mais importante.
A frase também tem destaque no conto original, logo no começo da história. Até então, Louise não teve muitas escolhas relevantes: é claro que ela aceitaria o trabalho de intérprete dos aliens. É claro que ela daria o melhor de si, inclusive desafiando autoridades. A alternativa seria uma guerra mundial.
Mas, ao transcender o tempo, sabendo do sofrimento terrível que ela e sua família passariam, sabendo que ela acabaria sozinha, com uma filha morta e um ex-marido ausente, ela ainda escolheu dizer “sim”.
Essa parte não é só um posfácio da história de visita alienígena. Essa parte é a história do filme. E mesmo que na mecânica do filme essa escolha seja meio inevitável para um final satisfatório, não é bem assim no mundo real.
Nem todo mundo, tendo um nível razoável de certeza que seus filhos herdariam uma característica que, digamos, diminuiria sua qualidade de vida no futuro, escolheria tê-los. Muito menos sabendo exatamente como as coisas aconteceriam.
Isso torna Louise uma pessoa egoísta? Ian tem razão em abandoná-la?
Viver uma vida boa por doze anos e sofrer horrivelmente depois é ter uma vida bem vivida?
A questão do livre-arbítrio também é interessante. Essa é uma daquelas histórias onde não há escapatória do destino? Ela conseguiria ter escolhido não ter a menina? Ou ela só estava cumprindo seu papel no grande esquema das coisas?
Na minha opinião, olhando pela perspectiva da história do filme, ela precisa poder escolher. Mesmo que o universo seja determinista, ela mesma não parece se dar conta disso, e o ponto-chave da história envolve esse dilema. O conto original dá um pouco mais de informação sobre a linha de raciocínio da Louise. Este é o penúltimo parágrafo do conto:
“From the beginning I knew my destination, and I chose my route accordingly. But am I working toward an extreme of joy, or of pain? Will I achieve a minimum, or a maximum?”
(“Desde o começo, eu sabia do meu destino, e escolhi meu caminho de acordo com ele. Mas eu estou trabalhando em direção a um extremo de alegria ou de dor? Vou atingir um mínimo, ou um máximo?”)
Ela sabe o que vai acontecer. Mas ela não sabe se isso é uma coisa boa ou ruim. Ninguém sabe, nem em retrospecto. Mesmo assim, ela escolhe.
E é assim que funciona uma boa história de sci-fi. Não é sobre construção de cenário, ou sobre trama, e muitas vezes não é nem mesmo sobre personagens. É sempre sobre a humanidade nos personagens (e na trama, e na construção de cenário).
Qual a relevância disso pra nós como espécie, sociedades, indivíduos? Esqueça armas laser, viagem na velocidade da luz, guerra intergaláctica.
Isso é só cenografia para questões mais profundas e mais reais.
Arrival é o sci-fi humanista em sua melhor forma.
Mais uma coisa: agora que o filme está em vídeo, tenho ouvido falar de algumas versões, até de fontes seguras como o Google Play, não traduziram um trecho importante da conversa dos aliens com a Dra Banks quando ela entra na atmosfera deles e que aparece na versão do cinema.
Sem essa tradução, não tem como sabermos de um ponto importante da trama (que eu acabei de dizer que não é tão importante assim, eu sei).
Se a sua versão não tem essa tradução, aí vai uma tentativa: Louise pergunta por que eles [os aliens] estão fazendo tudo isso. Costello responde alguma coisa sobre os humanos devolverem o favor daqui 3000 anos. E só. Isso também não está no livro, mas eu achei apropriado pra deixar a visita toda menos mística.
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