Uma das quedas mais memoráveis da minha infância foi de bicicleta.
Descia uma ladeira numa velocidade que a mim parecia alta e, por isso, emocionante. Tinha mania de tirar as mãos do guidão, sentindo-me muito ousada e aventureira. Ventinho no rosto, uhuuuu!
Acontece que, por ter ficado abismada com um casal de cachorros copulando – selvageria que eu via pela primeira vez na vida e ainda demoraria um tempo para entender do que se tratava – acabei ignorando uma lombada.
Quando dei por mim, chão.
Senti invadir-me aquela ardência latejante de ter os joelhos ralados no asfalto. Percebia ainda uma outra dor, mais roxa e profunda, vinda da boca do estômago. O guidão da minha Monark Brisa havia virado 90 graus, perfurando-me a camiseta de estimação e me acertando um golpe certeiro entre as costelas (suponho eu, já que não houve fratura).
Por sorte ou azar, estava com meu irmão. Mais de vinte anos se passaram e ele não me deixa esquecer da façanha de ter voado da bicicleta e caído do nada, feito tonta, de madura.
“Caiu, levanta” é o nome de uma das músicas mais bacanas do projeto Grandes Pequeninos, do Jair Oliveira. Enquanto a ouvia pela vigésima vez, a pedido de minha filha de 2 anos e meio, refletia sobre a responsabilidade de ensinar às crianças esse princípio de cair e levantar.
Há pais que não podem ver o filho tropeçar e já saem correndo, mais assustando que ajudando a infeliz da criança: “Own, meu bebê, vem aqui no colinho, cuidado pra não cair!”
Em completa oposição a essa atitude, “se não arranhou, não machucou, caiu, levanta”, diz a canção.
Perceba que as crianças olham para nós, pais ou responsáveis, quando levam um tombo e não se machucam. Só depois de verem nossa reação, executam a deles: tranquilidade ou completo desespero.
Não sou a louca que incentiva os pais a não acolherem seus filhos após as quedas. Só penso que não precisamos supervalorizar aquilo, reforçando que receberão carinho sempre que estiverem vulneráveis. A vulnerabilidade fará parte de suas vidas para sempre!
Quando é sério, eles deixam muito claro. O choro é diferente, ardido, sentido.
Quando não, por que não agir naturalmente, sem dar muito ibope para o tombo e seguir a vida?
Desde que minha filha nasceu, meus dias têm sido um exercício constante de autocontrole. Mas também de respeito ao seu aprendizado. Afinal, não quero que cresça em uma redoma e não saiba reagir diante de dificuldades quando eu não estiver por perto.
Quando observo que alguns seus tropicões recentes são seguidos por suas gostosas gargalhadas, vibro e agradeço a Deus, pois percebo que já sabe rir de si mesma. Que não se vitimiza e faz bico, como muitos adultos por aí, diante dos tombos da vida. Que não se acovarda e segue em frente. Tenta de novo. Confia que pode conseguir.
Não foi tranquilo, até aqui, auxiliá-la nesse processo inacabado. Meu marido e eu sofremos todos os dias para conseguir deixá-la correr riscos (sempre calculados, porque não somos doidos inconsequentes): subir escadas sozinha, equilibrar-se no banquinho sem apoio, escalar o brinquedão do parque e escorregar sem ajuda, comer areia e ver que é horrível… A mais recente proeza é pular do sofá sobre um monte de almofadas, imitando os três meninos (mais velhos e mais surtados que ela) que hoje tem como melhores amigos.
Nessas horas, a taquicardia do meu marido é mais forte que a minha. O medo comanda sua sala de controle quando o tema é “filha correndo riscos”.
Ainda bem, pois ao pai geralmente cabe essa função de nos prover segurança. Talvez pelo mesmo motivo, é dele que podem vir também as maiores afirmações de autoconfiança de um serzinho em formação!
Quem nunca ouviu de seus pais ou avós um “vai que dá” pode ter sérias dificuldades pela vida afora.
Confesso que herdei de meu pai a tranquilidade de me divertir com as tentativas de independência infantis. Quando eu era criança, ele me deixava mexer em tijolos que escondiam possíveis escorpiões. Meu irmão e eu o ajudávamos na construção de nossa casa de campo e, nas raras vezes em que eu encontrava um bicho qualquer, soltava um gritinho agudo, mas lembrava como matá-lo e me mantinha alerta, pois obviamente poderia haver outros. Entende? Risco controlado. Afinal, escorpião não é que nem cobra, que ataca tão rapidamente crianças indefesas (ou é e eu não sei?). Anyway, meu pai sempre estava por perto, mostrando que me ajudaria caso algo imprevisto acontecesse.
Talvez por isso eu seja hoje essa incentivadora declarada dos progressos mais ousados de minha filha, como ficar de boia de braço sem apoio na piscina funda com menos de um ano de idade, sem ter feito qualquer aula de natação.
É claro que nesse caso permaneci ao seu lado, com as mãos por baixo d’água, mas sem tocá-la. Bebeu um pouquinho de água com cloro? Sim. Assustou-se, ameaçou chorar? Sim. Mas me viu sorrindo a seu lado. Não debochando dela – é importante frisar. Mas controlada, oferecendo-lhe apoio, dizendo que isso acontece e que ela poderia tentar de novo, se quisesse, pra ver como era uma delícia! Transmiti-lhe segurança, apenas. Talvez ela a tenha absorvido até demais, já que um ano depois a garota tem um desapego perigoso perto de piscinas.
Às crianças é necessário aprender a cair.
Aos adultos é necessário aprender a DEIXAR cair.
É uma negligência benigna. Do chão, não passa. Não é assim a nossa rotina diária? Cheia de obstáculos, imprevistos e desafios?
Quando superprotegemos as crianças, corremos o risco de entregar ao mundo adultos mimados e eternamente insatisfeitos, que acreditam que tudo precisa ser do jeito deles. Que o patrão tem que atender seus mimos do mesmo jeito que o papai faz. Que a empresa deve pensar somente em seu bem-estar, como a mamãe. Que o almejado crescimento profissional deveria ser consequência natural de sua existência, independentemente dos resultados pífios que apresenta e de seu comprometimento nulo com o trabalho. Qualquer semelhança com a geração atual NÃO é mera coincidência.
Quando exercitamos o “caiu, levanta”, ensinamos às crianças que atitudes ousadas têm consequências que podem ser vitoriosas ou penosas.
Vitórias lhes darão autoconfiança.
Derrotas lhes ajudarão lidar com frustrações e buscar alternativas.
E ambas, em conjunto, permitirão que adquiram resiliência e não dependam sempre de nós, por mais que isso seja o que mais nos doa.
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