Meu tio trocou de óculos, mas não foi isso que percebi primeiro. Algo nele estava diferente.

Não era o cabelo grisalho, que continuava penteadinho para trás; não era o sapato, social, cuidadosamente engraxado; não era a roupa, apesar de eu desconfiar que há algo de muito errado no universo nos raros dias do ano em que ele resolve usar mangas compridas.

Teria emagrecido? Ou engordado? Não fazia a mínima ideia. Estaria mais corado, talvez? (Que palavra esquisita é “corado”). Não, seu físico era o mesmo de sempre.

Por uns instantes, fiquei tentando reconhecê-lo. Esse era aquele tio que sempre foi querido pela família todinha. Tio que ajuda todo mundo. Tio que sabe conversar sério e faz palhaçada como ninguém. Aliás, sempre achei que ele tinha vocação para a bipolaridade, por conseguir passar de uma conversa profunda sobre a vida a uma imitação de galo carijó para acordar toda a família às 10 horas da manhã de ano novo, em plena madrugada. Mas algo nele tinha mudado.

O que será que estava diferente? A dúvida me angustiava.

Demorei para perceber: ele havia trocado de óculos!

A armação de antes, maior e mais grossa, não combinava tanto com sua personalidade gentil e prestativa. Os óculos novos eram menores, com lentes envoltas em náilon, daqueles que encaixam tanto na proporção do rosto quanto na alma da pessoa.

Sim, ele parecia de alma nova! Sua aura era de um pensador, intelectual, legislador, sei lá. Estava com uma credibilidade nível infinito – dessas que só óculos perfeitos conseguem nos dar.

Não que a esse tio faltasse credibilidade. Muito pelo contrário. Ele sempre teve o respeito e a admiração de todos os que o cercaram. Mas com aqueles óculos… Gente…

Num impulso, falei tudo isso a ele. Chuva de feedbacks positivos – aos quais ele reagiu timidamente, todo encabulado. Elogio é uma coisa que não nos pertence: a gente tem de entregar ao outro. Ali estava a minha bandeja cheinha para ele.

Fiquei pensando, então, que por mais que óculos sejam motivo suficiente para uma mudança completa no visual (e até na autoestima de alguém), ainda não era aquilo que percebi de diferente no meu tio, nesse dia.

Depois de digerir um pouco tal fato aparentemente banal, descobri que era eu quem estava usando uma nova lente. A da sensibilidade.

Talvez por estar mexida com a perda recente do meu pai. Ou, ainda, por estar decidida a dar mais valor às coisas essenciais que às urgentes ou importantes.

O fato era que eu tinha mudado minha lente e, em consequência, estava percebendo o mundo com cores menos primárias e mais plurais.

Olhei para meu tio e não vi apenas uma pessoa “normal”, que sempre esteve por perto. Enxerguei sua essência, seu caráter, seu exemplo, sua dignidade.

Meu tio ajudou e ainda ajuda a incontáveis pessoas, de indescritíveis formas, mas as lembranças que tenho dele não são idealizadas, como se fosse um tipo de super-herói. São humanas: sempre foi um marido zeloso e romântico, reinventou-se profissionalmente umas tantas vezes para ajudar no sustento e educação de cinco filhos e, apesar de sua fé na eternidade, permitiu-se chorar feito criança no velório de sua sogra, minha avó, a quem admirava profundamente.

Meu tio trocou de óculos, mas não foi isso que percebi primeiro. Algo em mim é que estava diferente.

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Na foto: Rogéria (filha), Tia Zenildes (esposa), Analice (filha), Fábio (filho), Tio Manassés, Carolina (filha) e Silvia (filha).