Minha filha tem 2 anos e organiza sapatos como ninguém.
Basta ver um par de tênis do papai no meio da sala – ou do quarto, e até do armário – que ela interrompe o que estiver fazendo para colocá-los em ordem. É automático. Ela pega os dois pés, põe um ao lado do outro, alinhados. Pertinho da sandália da mamãe, que ela já tinha enfileirado da mesma forma. “Agora o da Bel” – diz, enquanto tira os sapatinhos de cristal e os posiciona junto aos outros pares. “Plim! Papai, mamãe e a Bel”. Só depois, sossega e volta a brincar.
Se a compulsão fosse só com sapatos, eu já teria me conformado: haveria parido uma centopeiazinha com tendências consumistas, e tudo bem. Ao longo da vida, ela iria entender que seres humanos tem, em geral, dois pés, apenas, e não precisam, portanto, de tantos sapatos. Mas não era só com calçados.
Ontem mesmo, observei a pequena alinhando vidros de pimenta que estavam sobre a mesa: tampas paralelamente posicionadas ao lado dos respectivos frascos. Não falou nada. Arrumou. E voltou a comer.
Há pouco tempo, no aeroporto, andávamos por um corredor. Vejo-a caminhar sobre uma linha, daquelas guias adesivadas no chão. Mais adiante, a linha fazia um cotovelo: desviava para a direita, e depois para a esquerda, seguindo pela mesma direção do corredor. Fiquei olhando de longe, esperançosa de que ela não fizesse aquilo. O corredor era reto. Não tinha por que virar 90 graus, e depois mais 90 graus, para, então, continuar no mesmo sentido. É claro que ela acompanhou a linha, diante de meus olhos arregalados – e da gargalhada larga do meu marido.
Ele sabe de onde veio esse transtorno genético. Dele é que não foi.
Não tenho compulsão por limpeza, hipocondria, tiques. Não sou adepta a rituais de quaisquer tipos. Coleciono umas poucas manias bobas.
Porém, confesso: simetria, exatidão e alinhamento são leves obsessões das quais não me orgulho.
Quando pequena, inconscientemente (juro!), procurava manter meus lápis de cor alinhados e organizados por cor. Apontados, claro. Era daquelas que não pisava nas divisões da calçada. Pra mim, uma brincadeira inocente. Pro mundo, um probleminha em potencial.
Na minha mesa de trabalho, cada coisa tem seu lugar. Telefone do lado esquerdo. Orquídea na direita, perto da janela. Ah, e não ouse rabiscar nada no meu bloco de anotações. Especialmente se ele já tiver coisas escritas por mim! Tenho memória visual e vou me incomodar feito louca se você anotar algo ali. Ficarei paralisada. Tortura da pior espécie.
Uma vez, com algum tipo de boa intenção, alguém cometeu esse crime. O bloco estava sobre minha mesa. Eu estava fora do escritório. Tocou o meu ramal. Anotaram o recado. À CA-NE-TA. Na página que estava toda escrita, por mim, A LÁ-PIS. Quase tive um ataque de urticária. Não pode! Nunca mais faça isso. Prefiro ficar sem o recado. Podia ser o Silvio Santos me dizendo que ganhei o baú da felicidade. Não invada com seus garranchos o meu bloco de anotações.
Meus cadernos nunca foram bonitinhos, desse jeito que você está imaginando. Aquela coisa de princesa, decorados com caneta de 12 cores. Eram organizados do meu jeito. Bic azul ou preta – dependendo do humor do dia. Letra de canhota, uns rabiscos, uns sublinhados. Balões, caixa alta, pontos de exclamação. Eu aprendia anotando. Gostava de rabiscar daquela forma. De um modo sobrenatural, sabia que aquilo me ajudaria a lembrar a matéria na hora da prova.
Quando alguém conversa comigo mexendo em algum objeto, perde minha atenção. Enquanto aquela chave não parar de balançar ou aquela caixinha não for fechada e deixada sobre a mesa (com algum alinhamento que faça sentido), não estarei presente na conversa. Permanecerei em estado de agonia e perturbação interna. Mesmo que minha face mostre uma pseudo-candura.
No dia-a-dia, muitas coisas lutam para tirar meu equilíbrio. Prato feito que vem com elementos no lugar errado não tem meu amor. Troco tudo de posição – para, então, conseguir comer. O certo é arroz na direita, feijão ao lado (e jamais por cima!), salada na esquerda, mistura acima dos dois. Sei lá, gente. Só tenho paz quando está assim.
A louça também tem uma maneira correta de ser lavada: primeiro os copos (que estão mais limpos), em seguida os pratos e potinhos diversos, depois os talheres, por último, as panelas. Ah, um detalhe fundamental: na hora de enxaguar, garfos com garfos; colheres com colheres; facas com facas – estas, viradas com a ponta para baixo, para não machucar a mão na hora de guardar. Óbvio, não?
Alguns seres de extrema frieza e crueldade, cientes dessa minha débil condição, costumam me mandar fotos com pisos mal assentados, Kit-Kat mordido sem respeitar as fileiras, quadros tortos, confeitos amarelos com um único pontinho azul. Tudo para massacrar meus sais minerais e me agoniar a alma.
Certa vez, reparei que um dos azulejos do banheiro estava invertido. O pedreiro errou, colocou a flor de ponta cabeça. Ah, não, gente. Não era possível. Constipei. Nada feito naquele banheiro. Só conseguia ver aquelas indefesas pétalas implorando para serem viradas pro lado certo. E eu ali, impotente.
Considero-me, apesar das esquisitices, uma pessoa relativamente normal. Minha filha também já tem suas manias (que, obviamente, não incentivo, mas respeito). Quem não tem? Chato seria se todos fossemos igualmente perfeitos, sem peculiaridades nem discordâncias. Um monte de Ford preto.
Dizem que, de perto, ninguém é normal. Ainda bem.
Que texto fantástico! Uma leitura gostosa, parabéns! 🙂
Fico bem feliz que tenha gostado, Luana. ^_^