Disciplina: eita, palavrinha.
Por vezes, acho que a minha é resultado de um sistema de vida inseguro, nascida das exigências da posição de bolsista numa escola fundamental particular na zona sul de São Paulo, quando o país, pós-ditadura, naquela metade da década de 80, tentava andar com suas perninhas, como um bebê cambaleante.
Ouvia que os deveres cabiam aos bolsistas naquela instituição (já os privilégios, como participar do grupo de teatro, só se sobrasse vaga). Construiu-me. É inegável (e lamentável, minha gente. Ninguém gosta da exposição ao preconceito, mas todos o vivemos, em diversos níveis e sistemas, desde cedo).
O tempo nos aperfeiçoa, certo? Sim! Mas, e a disciplina, criatura? Continuou lá, teimosinha como só ela, aprendida na escola.
A pessoa cresce, não se reproduz por causa da endometriose e vai envelhecendo e esperando que o termo “morre” demore um bocado de tempo pra ser dito pela descendência – do irmão, afinal, ela não teve filhos.
É a disciplina que leva a “persona” a não se acovardar e fazer o bendito check up anual (novo parêntese, pois a gente está se conhecendo: digamos que a persona não foi tão disciplinada com o prazo de envio deste texto. A benevolente editora está avaliando a penitência, porque diz que a espera vale o custo-benefício).
E o check up veio com um diagnóstico difícil, que ela recebeu como um meteoro no solo da cabeça atordoada e pensante, mas com uma força que não sabe de onde veio.
Cirurgia urgente, pra ontem, no intestino. Turbilhão de ansiedade invadia as veias como, dois meses depois, a anestesia geral e o bloqueio também invadiram. Rápido, intenso, concentrado, monitorado, retirado e a salvo.
“E as biópsias, doutor?”
Tudo certo, vamos em frente, acompanhando com os exames periódicos, como deve ser.
Então nada muda, certo? Nadinha, disciplina com os exames, mudar estilo de vida como recomendado, o que inclui ginástica com mais frequência, segurar um pouco a mão com o excesso de trabalho, dormir mais do que quatro horas por dia.
Mas alguma coisa mudou nisso tudo? Hein, mudou?
Sim, não é possível passar por uma experiência como essa e não sair diferente (espera-se melhor, no mínimo).
Com pais idosos, superprotetores e um tanto quanto dramáticos, a solução foi silenciar durante os dois meses entre diagnóstico e cirurgia. Citar discretamente que algo não ia bem, mas que logo melhoraria, após uma cirurgia.
E organiza a vida, confidencia a algumas amigas íntimas (Santas Cris, Eli, Shirley e Judite!) para entrar no centro cirúrgico com um backstage invejável de sorrisos entre lágrimas e um “vai dar tudo certo, amo você”.
Duas vezes o chão tremeu: com a notícia e numa manhã de quarta, ao despertar, sentada na cama. Veio a pergunta: “mas por quê?”. E o que me acordou por semanas durante as madrugadas de agosto e setembro soprou aos meus ouvidos: “Isso também vai passar”. Nenhuma lágrima. Levantei e fui pro banho, já que estava atrasada. Não ria nem me julgue, mas eu sentia uma mão suspendendo meus pés, uma voz que me soprava palavras de motivação. Não sei explicar ao certo como isso aconteceu, mas posso dizer: sim, me conduziu, foi uma experiência divina.
Já te pedi para não me julgar. Não julgo você. Não sei se acredita em alguma religião (espero que sim) ou em alguma força superior. A minha chamo de Deus e creio que, aos 36 anos, vivi uma experiência com Ele.
Os poucos que sabiam o que eu estava vivendo vinham conversar comigo e perguntar o mesmo que eu naquela manhã de quarta. Por fim, confessavam que tentaram me consolar, mas foram os que saíram consolados.
Há menos de dez dias fui operada. Tudo dentro do previsto na recuperação. Há ainda muitas consultas, muitos acompanhamentos para que tudo fique na mais absoluta paz.
Estou feliz, aliviada, agradecida. O texto que você lê nasceu desta experiência. E é uma celebração.
Gente estranha, esta, que se apresenta trazendo um trecho difícil pra abertura de sua carreira como cronista, né? Mas o que eu trago aqui é o compartilhamento de uma experiência que me faz pedir a você: não se acovarde diante dos desafios, dos exames, dos foras, das demissões, das rejeições.
Abra-se ao que pode te transformar. Pode ser após a lágrima que o seu olhar encontrará tamanho brilho capaz de iluminar muitas estradas.
Martoca, feliz por ter tido o privilégio de tê-la conhecido.
Chamo de meteoros o que vc denomina por “disciplina”.
Isso só reforça meu mantra: FÉ É ACREDITAR NAQUILO QUE NÃO VEMOS!
Sigamos, pois a Esperança está “lá no fundo”…
Beijos e parabéns pro texto!!!!!
Martinha, que show o que li por aqui. E mais show ainda ver a sua determinação, confiança e fé em situação tão difícil que é a da saúde. Parabéns pela superação, pelas crônicas, por dividir com simples mortais, palavras de poeta. O meu muito obrigada por Deus te colocar em nossas vidas, seja pessoalmente ou por meio das palavras. Torço por vc, colega de Letras! Bjs!